Depois de seis anos quase ininterruptos no Qatar, mais de oito propostas e inúmeras tentativas de deixar o país, Paulo Autuori está de volta. Um fato raro para quem, neste século, trabalhou por somente pouco mais de um ano no futebol brasileiro, somadas as passagens por Botafogo, Cruzeiro, Grêmio e São Paulo, essa a mais vitoriosa, com títulos da Libertadores e do Mundial de Clubes, em 2005.
Com seu tom de voz peculiar, estilo tranquilo, mas firme, o técnico bateu um longo papo com O GLOBOESPORTE.COM na última semana, no Rio de Janeiro, onde descansa, cuida da mãe de 92 anos, mata a saudade de casa, e se prepara para os próximos desafios. Autuori pretende voltar a trabalhar no Brasil. No momento, tem propostas de clubes árabes, mas já descartou. Em seu planejamento de carreira, a vida à beira do gramado vai durar aproximadamente mais cinco anos. Depois, quer se tornar manager. Por fim, uma ambição ainda maior, e inesperada: presidente da CBF.
Sem críticas à administração atual, o treinador coleciona ideias colhidas em suas passagens pelo exterior para tentar implantar no futebol brasileiro. A entrevista revelou certa desilusão também com o lado de dentro do campo. Campeão brasileiro pelo Botafogo e bi da Libertadores - ganhou também pelo Cruzeiro, Paulo Autuori vê o futebol brasileiro descaracterizado.
- Não temos mais meias, não temos laterais que atacam e defendem, como sempre tivemos, uma quantidade de faltas absurda porque há preguiça de recompor. Desde que saí do país, dentro de campo, não vi muitas mudanças.
O treinador começou falando da dificuldade que encontrou para se livrar dos compromissos no Qatar, falou da Copa do Mundo de 2022 naquele país, cercada de suspeitas, do seu ceticismo em relação ao Mundial do ano que vem, no Brasil, mas transformou a conversa numa verdadeira aula de futebol. Com os dedos sobre a mesa de uma cafeteria num shopping center, desenhou sistemas de jogo, variações, e mostrou como as linhas defensiva e ofensiva têm de atuar próximas umas das outras.
- No próximo time que eu assumir, vou levar um diretor de harmonia de escola de samba para dar uma palestra e ensinar o movimento sincronizado (risos).
A seguir, os principais lances do bate-papo com Autuori.
GLOBOESPORTE.COM - Como foi a saída do Qatar? Sempre ouvimos falar que é complicado sair de lá.
PAULO AUTUORI - Tento sair há algum tempo. Minha mãe está com 92 anos, preciso dar suporte. E não acredito no futebol do Qatar. Falei isso ao presidente da Federação. Trabalhei num clube (Al-Rayyan) que, pela primeira vez na história, ganhou um jogo internacional só com jogadores locais, e média de 20 anos. Por isso me chamaram para a seleção olímpica. Era uma geração perdida, um dos filhos do Emir, o que manda no esporte e com quem tive problemas, disse para eu subir um ou dois. Não perdemos nenhum jogo, mas quando assumi, me deram a relação de atletas que eu poderia escalar, e um estava suspenso. O advogado comeu mosca. Não perdemos, e ficamos fora.
Fale mais desse trabalho com jogadores locais. É raro por lá, não?
Os garotos não jogam porque os treinadores não acreditam na base. E, do meio para frente, sempre usam estrangeiros. Então, havia uma carência na seleção. Tem de mudar muita coisa. Não há público nos estádios, e futebol para mim tem dois protagonistas: jogadores e torcedores. Quando técnicos, dirigentes e árbitros querem ganhar protagonismo, estragam o espetáculo. Não há cultura de futebol. Deveriam limitar o número de estrangeiros, forçar os clubes a escalarem os jovens.
Você disse que teve problemas com o filho do Emir, que cuidava dos esportes. Que tipo de problemas?
Outra coisa que bati de frente: criaram dois times, o Lekhwiya, que é o time da polícia, e o Al-Jaish, do exército. Os dois têm orçamento direto dos Ministérios do Interior e da Defesa. O Lekhwiya subiu, ganhou fácil, e começaram a dar passaportes para os estrangeiros atuarem como locais. Eu não podia ficar calado, falei de forma dura, mas educada. Dois dias depois, me ligaram dizendo que minhas declarações não haviam sido bem recebidas. Por tudo isso eu nem imaginava ser chamado para a seleção.
E como foi quando assumiu a seleção principal?
Cara, faltava um jogo, contra o Irã, fora de casa. O empate nos garantia a classificação para a fase seguinte das Eliminatórias, e mesmo se perdêssemos, o Bahrein precisava ganhar de dez da Indonésia. E ganhou! 10 a 0! A Indonésia foi sem goleiro reserva, o titular foi expulso com três minutos de jogo, não sei quantos gols de pênalti, uma vergonha. Empatamos no fim do jogo. Parecia título. Depois, estávamos numa situação boa, com sete pontos, embolados com Uzbequistão, Coreia do Sul e Omã, aí veio a Copa do Golfo, que ninguém dá valor. Só quem ganha. Pedi ao presidente para usar jogadores novos, prepará-los, ele topou, mas veio uma ordem de cima. Pedi para ir embora, marcaram reunião na casa do rei, não deixaram. Fomos com o time titular, jogamos muito abaixo do que podíamos. E depois falei que queria ir embora.
Como era a casa do rei?
Fui ao palácio, ele é um cara simples, humilde, gosto muito dele. Mas, sinceramente, eu ficava constrangido. O futebol era um negocinho para quem comanda um país com papel fundamental na região. Eles construíram uma cidade, fizeram doações para países africanos, entram com amparo, grana. A relação foi ótima, mas não tinha torcida. Esses clubes novos, então... Agora estão sorteando dois carros por jogo. Se você for, a chance de ganhar é grande, ninguém vai (risos). Eles dão excelentes condições, mas não tem matéria-prima, que é jogador, e produto final, que é torcida.
Paulo Autuori no São Paulo: Libertadores e Mundial (Foto: Agência O Globo) |
É um país atrás de visibilidade. O futebol não acompanha o país, que cresce de forma sustentável. Eles priorizam educação, pesquisa, saúde, há uma cidade educacional que não tenho palavras para descrever, construções em ritmo frenético. É espetacular! Mas eles acham que vão comprar o futebol no supermercado da esquina. É como no mundo todo, futebol é imediatismo.
Mas o povo festejou a Copa, teve importância para eles?
Foi um título de Copa do Mundo, parou a cidade, foram para as ruas. Eu acho que eles vão dar show. Não querem abrir mão do verão porque têm certeza que vão proporcionar boas condições a todos, estão construindo pontes para ligar aos países ali perto. A organização tem apoio de gente forte, europeus. A questão é o calor e o choque cultural. Quero ver quando os ingleses tomarem todas e botarem a bunda de fora.
Essa denúncia de compra de votos, e as suspeitas em torno da escolha, não podem atrapalhar?
Não acredito. Tem muita gente envolvida nisso, e nem estou falando deles, não.
E sobre a Copa de 2014, no Brasil, o que pensa?
Tenho muitas dúvidas. Que imagem vamos deixar em relação à segurança, aeroportos, que são uma vergonha? Uma reportagem no “The Times” comparava o Aeroporto Tom Jobim (o Galeão, no Rio de Janeiro) a uma rodoviária de terceiro mundo. É um momento extraordinário para passarmos uma imagem boa, e o Brasil voltar a ser um polo turístico, mas e depois? Há quanto tempo não vemos times de Manaus e do Mato Grosso na Série A? Vão diminuir os estádios? Gostaria que tudo corresse maravilhosamente bem, mas já dizem que na hora H o brasileiro dá um jeitinho. Esse é nosso grande problema. Se nesse momento de estabilidade, não tivermos capacidade de planejar, respeitar cronogramas... Já se fala em quase duplicar os valores de alguns estádios, vamos fechar os olhos porque é futebol? Em relação a algumas coisas sou cético.
Estava com saudade do Brasil?
Sim. Quando me propus a sair, tinha como objetivo crescer profissional e pessoalmente. Ter contato com culturas diferentes de maneira mais profunda, ganhar mais tolerância, entender melhor as diversidades. E, profissionalmente, se eu for capaz de conseguir performance e resultados em realidades distintas, é sinal de que tenho flexibilidade, não tenho receita pronta. Ter de se ajustar às realidades te faz crescer. Hoje, me sinto muito mais seguro. Tem aquela coisa de estar muito tempo longe do futebol brasileiro... Futebol é futebol em qualquer lugar do mundo. O conceito é igual, você tem de adaptar.
E o que pretende fazer agora?
Preciso descansar um pouco, vendo futebol, é lógico. Dar um apoio à minha família, principalmente à minha mãe, e já começar ali na frente. Tenho propostas de fora, mas não quero. Fechei a possibilidade neste momento. Na vida não podemos dizer amanhã ou depois, mas quero voltar a trabalhar aqui no Brasil, estar próximo da minha família.
Estar perto da Copa do Mundo, de novas ideias, também te atrai?
Eu já havia colocado na minha cabeça que se houvesse uma coisa extraordinária de classificar no Qatar, eu não permaneceria. Não tenho essa vaidade de disputar uma Copa do Mundo. Pelo Qatar, que nunca disputou, com as dificuldades que conheço, só pra tomar porrada, dizer que disputei? Era um mundo em que eu não via futuro para mim. Eu quero fazer mais algum trabalho como técnico, e virar manager. Isso eu quero.
Como seria essa função de manager?
Quero trabalhar mais uns cinco aninhos como técnico para que essa função se solidifique no Brasil. Por isso, torço tanto para pessoas nessa função irem bem, ou para ex-jogadores que assumem posição de dirigente, como o Roberto Dinamite. As pessoas ligadas ao futebol precisam se preparar. Eu não quero trabalhar com grana, contratação, mas com filosofia de futebol do clube. No Grêmio, fizemos um trabalho em que eu estava envolvido com o sub-20, dando e participando de palestras. No Sporting Cristal, no Peru, eu dei treino para o time sub-15. Era só uma maneira de trabalho.
Mas o manager tem de fazer contratações, busca de jogadores, não tem?
Um trabalho de observação sim. Mas, definir valores, vai ter um cara da área para sentar e conversar. Não quero me envolver. Esse trabalho quero fazer no Brasil. Daqui a cinco anos terei 61, mais velhinho, vou impor mais respeito (risos).
E além disso, há alguma outra ideia no futebol?
No futuro, quero ser presidente da CBF.
É mesmo? É uma ideia consolidada?
Tenho minha plataforma (risos). Gostaria de trabalhar para o futebol do Brasil, fortalecer os clubes, as ligas, padronizar estádios, gramados, habilitar os profissionais com cursos, congressos. Por que não estabelecer uma meta para daqui a dez anos, e anualmente fazer um simpósio com todos os segmentos? Jogadores, técnicos, dirigentes, árbitros e imprensa. O público é o resultado final. Se dois desses setores estiverem brigados, não tem espetáculo. Se todos jogarem a favor, a cada ano temos uma nova perspectiva.
Hoje em dia, o 4-2-3-1 parece ter virado moda, todos usam esse esquema. O que acha dele?
No meu conceito, o melhor sistema é o 4-4-2, que permite variações. Podem ser quatro em linha no meio, que se usa muito na Europa. Pode ser o diamante, que são três no meio com um mais adiantado, que o Vanderlei (Luxemburgo) gosta de jogar. O que não entendo no 4-2-3-1 é que os dois caras por fora têm de ter capacidade física muito grande de ir e vir, leitura de jogo e orientação para quando a bola estiver de um lado, o cara do outro extremo fechar. E eles têm de ser atacantes porque quando o meia busca a bola atrás para organizar o jogo, eles têm de se enfiar para não isolar o centroavante. Senão perde efetividade. É interessante, já usei fora do Brasil, e bem, mas tinha jogadores com essas características.
O que te chama atenção no futebol atual?
As palavras do Guardiola, que foram muito verdadeiras quando falou que estava apenas fazendo no Barcelona o que via o Brasil fazer: capacidade de posse de bola. A gente descaracterizou o futebol brasileiro. Não há mais meias nem laterais que atacam e defendem. E o 3-5-2 é um dos responsáveis por isso. Os meias buscavam a bola porque os volantes não tinham capacidade de jogar. Com isso, ficavam longe da área e havia um desgaste muito grande. Aí, tem dois caras que não são nem carne nem peixe, que são os alas. Dois volantes e dois atacantes. Fica um cara só para criar. Se marcar bem esse cara, acabou.
Mas isso é responsabilidade dos técnicos, não?
Quer um exemplo? O Cristian (hoje no Fenerbahçe, da Turquia), aqui no Flamengo, era um terceiro zagueiro. Foi execrado, chamado de brucutu. Foi para o Corinthians, começou a jogar, sair, foi vendido. A culpa era dele? Outra coisa é a quantidade absurda de faltas porque há preguiça de recompor, e pelo desastre do calendário, que não permite treinar e ter recuperação física. É um absurdo parar a jogada de qualquer maneira, sinto vergonha de pedir isso a um jogador porque estou falhando no meu trabalho.
Mas também não há muitas faltas porque os árbitros brasileiros apitam demais?
É uma série de fatores, estou falando da minha área, tática e técnica. Não vou jogar a responsabilidade. Para ter um time que ataca toda hora, é preciso ter dois zagueiros que falem: “vai que aqui eu garanto”. Houve um período em que jogador tinha preguiça de sair para cobrir. Hoje o Dedé é um exemplo. Ele faz poucas faltas, se garante, tem responsabilidade.
O que acha do Neymar? Quando você saiu do país, ele estava começando a surgir.
Ele tem habilidade, capacidade técnica, de improviso, alegria de jogo. Mesmo jogando toda hora, não reclama. Parece bem assessorado pela família e outras pessoas. Mas vai sofrer mais quando for para a Europa porque aqui os times estão jogando com as linhas completamente separadas. Ele pega a bola, tem capacidade de driblar um, dois, três, o raio de ação dele é enorme. Na Europa as linhas jogam juntas, quando ele driblar um, vai ter outro chegando.
Então você joga no time dos que acham que ele precisa sair do Brasil?
Um ex-jogador já me disse que só foi jogar futebol na Europa. No Brasil, ele jogava bola. Taticamente haverá um crescimento, sem dúvida alguma. Ele terá de jogar com e sem a bola para carregar a marcação, e ter posse de bola, porque as linhas são muito compactas. Aqui no Brasil está se trabalhando a posse de bola por modismo. O Barcelona faz, então vamos fazer. Mas o negócio não é ter a bola, e sim ser efetivo com ela. Senão tem a bola pra nada.
Paulo Autuori em 1997, quando comandou o Cruzeiro (Foto: Agência Gazeta Press) |
Há os times que ganham jogos sem posse de bola, no contra-ataque...
Contra-ataque e bola parada. Hoje eu vejo contratar jogador porque é muito bom na bola parada. Espera aí, tem alguma coisa errada! Tem de contratar porque o cara joga pra c......, e, além disso, é bom na bola parada. Deixaram de falar do jogo em si. Vejo o atacante lá na frente, a defesa lá atrás, como vai falar em compactação? No próximo time que eu assumir, vou levar um diretor de harmonia de escola de samba para dar uma palestra e ensinar o movimento sincronizado (risos).
Algo no atual futebol brasileiro te chama atenção?
Não vi muita mudança, não. Acho que há uma tendência de gestão mais responsável, de não se gastar mais do que pode, pagar salários em dia, dar infraestrutura. E um passo importante será os clubes terem uma visão mais forte da base, trabalhar mais porque não vejo o futuro do futebol sem passar pelas categorias de base.
Você é bicampeão da Libertadores. Acha que em 2013 o campeão será um time brasileiro?
Estamos com muitos bons times, num nível muito homogêneo e diferente em relação aos argentinos. Nem Boca nem River estão tão fortes, hoje falamos de Tigre, Arsenal, Godoy Cruz... O nível dos brasileiros é muito bom: Fluminense, Corinthians, São Paulo, Grêmio, Atlético-MG, e o Palmeiras um pouco abaixo. Acho difícil que um deles não seja campeão. Ainda é proibido dois times brasileiros fazerem a final? Isso é um absurdo! É meritocracia, o cara chegou porque mereceu, independentemente do país. É ridículo. Pelo menos o cartão amarelo volta a suspender. Multa e suspensão, perfeito. Ótimo.
Por Alexandre Lozetti Rio de Janeiro
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