Páginas

sábado, 19 de janeiro de 2013

Mané mambembe: Garrincha botou o pé na estrada e encantou o país


Do Rio Grande do Sul ao Rio Grande do Norte, mito morto há 30 anos encarou campos do interior e vestiu camisas de grandes e pequenos









Mané Garrincha, feito um artista de circo, jamais conseguiu se desapegar de sua arte. Se sua plateia costumeira não ria mais, se seu picadeiro habitual não servia mais, o jeito era virar mambembe, colocar o pé na estrada, mergulhar nas entranhas do país. A decadência do mito de pernas assimétricas trouxe a reboque uma peregrinação do bicampeão mundial. Do Rio Grande do Sul ao Rio Grande do Norte, ele vestiu diferentes camisetas, defendeu clubes de tamanhos variados, enquanto mostrava os últimos traços de sua genialidade, em espetáculos ao mesmo tempo bonitos e tristes. Na semana que marca os 30 anos da morte de Mané, o GLOBOESPORTE.COM foi atrás de episódios dele Brasil afora - e alguns desses momentos estão reunidos neste texto. (Clique em cada escudo no infográfico abaixo para ler reportagens mais amplas sobre a experiência de Garrincha nesses clubes).

É uma história de decadência que começa no final dos anos 60, depois de Mané não conseguir dar grande contribuição à seleção brasileira na Copa do Mundo de 1966. Garrincha deixou o Botafogo, o lar de suas façanhas, ainda antes do Mundial, em 65, e aí nunca mais se encontrou. Primeiro foi ao Corinthians, onde teve alguns lampejos, e depois quicou por diferentes cantos do país. No Rio de Janeiro, teve passagens curtas, em alguns casos quase imperceptíveis, por Flamengo, Vasco, Portuguesa e Olaria, onde encerrou a carreira (saiba mais no vídeo acima).

No meio do caminho, ou mesmo depois de aposentado, Mané peregrinou. Jogou por clubes variados. Em alguns casos, não passou de uma partida - como ocorreu com o Cruzeiro e com o Novo Hamburgo. Em outros (o Fortaleza, por exemplo), não foi muito mais longe. Mas sempre, seja ressuscitando dribles, seja jogando mal, encantou quem o viu - até morrer em 20 de janeiro de 1983, vítima de complicações decorrentes da cirrose, culpa do excesso de álcool que consumiu ao longo da vida.

Rejeitado, acolhido, idolatrado

Garrincha com a camisa do Cruzeiro em jogo
contra o Democrata-MG (Foto: Arquivo Pessoal)
Acredite: houve quem não quisesse Mané em seu time. Foi o caso do Democrata-MG. Garrincha deveria defender o clube de Governador Valadares. Todos foram ao estádio em 1973 para ver isso. Era aniversário da cidade - e o presente era Mané. O problema é que o atacante jamais treinou com a equipe. Irritados, treinador e dirigentes decidiram que ele não jogaria. Mas ele jogou. Pelo adversário...

É que a festa não poderia ser estragada. O jeito foi pensar rápido e oferecer Garrincha ao oponente - ninguém menos do que o poderoso Cruzeiro. Mané foi a campo com a camisa da Seleção. Já no gramado, a retirou - e aí mostrou o uniforme celeste por baixo. O público local formou uma vaia uníssona contra aqueles que rejeitaram Mané.

- Garrincha me perguntou o que era para fazer em campo. Disse pra ele jogar tranquilamente. Dei a camisa do Cruzeiro para ele, que atuou bem. Não consigo entender por que eles perderam a chance. Quem ganhou foi o Cruzeiro - recorda Benecy Queiroz, técnico do Cruzeiro naquela partida.

Foi a única vez em que Garrincha vestiu a camisa do Cruzeiro. E o mesmo aconteceu no Novo Hamburgo, clube de cidade homônima na região metropolitana de Porto Alegre. O Anilado, como a equipe é conhecida, encarou o Inter em um Beira-Rio recém-inaugurado em 1969. Lotou treinos no estádio dos Eucaliptos, em Porto Alegre, e no Santa Rosa, em Novo Hamburgo. Na época, disse que estava confiante em ir para a Copa de 70. Não conseguiu.

Jornal Zero Hora noticia partida de Mané pelo Novo Hamburgo contra o Inter (Foto: Reprodução/Zero Hora)
No Beira-Rio, encantou. Jogou por 60 minutos. Deu dois dribles desconcertantes em seu marcador, Jorge Andrade. Perdeu o jogo, mas ganhou mais um episódio para sua história.

Pelo Fortaleza, Mané foi a campo no "Jogo dos Campeões", contra o Fluminense. Era 1968, e ele já estava seis quilos acima do peso. Também ficou cerca de uma hora em campo com a camisa da equipe cearense. Ao sair, foi ovacionado.

Garrincha com a camisa do Alecrim no Rio Grande
do Norte (Foto: Acervo/Ribamar Cavalvante)
Também jogou pelo Alecrim, do Rio Grande do Norte. Em 1968, em Natal, enfrentou o Sport e perdeu por 1 a 0. As 6 mil pessoas que lotaram o estádio Juvenal Lamartine pagaram o cachê de Mané. A atuação não foi das melhores. Mas, como de costume, ele foi saudado pela torcida.

Um ano depois, pelo Flamengo, Garrincha voltou a Natal e fez um dos gols da vitória de 2 a 1 sobre o ABC. Após mais quatro anos, em 1973, o gênio integrou a seleção de Currais Novos contra o Centenário de Parelhas. Ele parou a cidade. Chegou lá com uma gaiola repleta de passarinhos - Garrincha é o nome de uma ave, e ele costumava ser presenteado assim.

Mogi das Cruzes, interior de São Paulo, foi mais uma a receber Garrincha. Foi em 1973, um sábado de sol. Ele jogou pelo XI da Saudade, time de veteranos do União, clube local. Foi uma festa. Mais uma - para a torcida e para quem jogou ao lado dele.

- Eu era lateral-direito, e ele jogou perto de mim. Então, na minha função, eu sabia o que a torcida queria, que era pegar a bola e tocar para ele. A torcida gostava, e o Garrincha fazia aquelas estrepolias todas - lembra Tirreno Da San Biagio, o Toti, hoje empresário, colega de time de Garrincha por um dia.

XI da Saudade: Garrincha é o último, da esquerda para a direita (Foto: Tirreno Da San Biagio/Arquivo pessoal)
As peregrinações de Garrincha foram especiais para uma penca de jogadores - profissionais ou amadores. Eles tiveram a rara chance de dividir o mesmo espaço do planeta com um dos maiores gênios que o futebol já criou. E, quem sabe, até ganharam a chance de pará-lo.Quincas, zagueiro do River-PI, garante que Mané não viu a cor da bola enquanto foi marcado por ele. E olha que ele estava no auge, em 1958.

- Não fui mais um João - brincou o ex-atleta, em referência ao nome que Garrincha, indiferente a seus marcadores, costumava chamar todos eles.


Fim da linha

Imagem já gasta da passagem de Garrincha por
São Pedro, palco de seu último jogo registrado
(Foto:Guto Marchiori)
Mas as andanças de Garrincha, o craque mambembe, um dia teriam fim. O envolvimento dele com o álcool indicava o perigo. Em 1982, ele foi a São Pedro, no interior de São Paulo, para defender o Milionários, equipe famosa por reunir ex-jogadores. A partida foi em 17 de setembro. Quatro meses e três dias depois, Mané morreria.

Garrincha já era uma figura caricata. Ele jogou por apenas 30 minutos. Não suportou mais do que isso. Seu time venceu a seleção de São Pedro por 3 a 2, e o bicampeão mundial não fez gols. Dizem, porém, que recebeu uma cerveja de um torcedor e a bebeu em campo mesmo. O público, naturalmente, vibrou.

Muro do Estádio São Pedrão, local do último jogo de Garrincha (Foto: Guto Marchiori)

O estádio, chamado São Pedrão, ainda hoje tem uma inscrição em seu muro manifestando orgulho de ali ter sido o palco do último jogo de Garrincha. No início do ano seguinte, a despedida de Mané foi além dos campos. Foi um adeus à vida.




Na noite do dia 19, ele procurou um posto público de saúde. Aparentava embriaguez. Foi transferido para uma clínica especializada em problemas mentais. No dia 20, às seis da manhã, teve sua morte diagnosticada (reveja no vídeo acima). Morreu sozinho. Depois, foi velado no Maracanã, sob os olhares de multidões, e retornou à localidade de Pau Grande-RJ, sua terra natal, onde o craque mambembe começou a brincar de jogar bola na infância.

* Texto feito com informações das reportagens de Diego Souza, Guto Marchiori, Josiel Martins, Juscelino Filho, Lucas Rizzatti, Marco Antônio Astoni, Matheus Magalhães e Petterson Rodrigues.

Por Alexandre Alliatti *Rio de Janeiro

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seu comentário é sempre bem vindo. Participe com suas opiniões!